Quero contar-te a história de uma cachorrinha, que foi minha fiel companheira e a qual dei o nome de Guria.
Certa manhã, estava eu na área de minha casa, em Bagé (RS), contemplando a rodovia BR-153, que leva ao Uruguai, à Colônia Nova e a muitas estâncias, onde o movimento não cessa dia e noite, carros e veículos de todos os tipos vão e vêm constantemente. De repente, fui surpreendido, vinha chegando ao trotezinho uma cachorrinha branca, com manchas brancas e pretas, muito alegre. Eu não queria mais um cachorro em casa, então corri-a aos gritos, com um relho e ela se foi. Dias mais tarde aconteceu a mesma coisa e foi levada e largada numa vila pela cidade e, pela ausência demorada, parecia que não voltaria mais. Puro engano, para surpresa minha, vinha ela chegando da mesma maneira que das vezes anteriores, mas aí eu disse: agora tu vais ficar. Tornou-se minha companheira inseparável. Quando eu dava minha caminhadas pela BR-153, pela manhã, me seguia passo a passo, ida e volta. Chegando em casa, descansava e ela ficava ao meu lado. Depois eu subia ao meu escritório e ela ficava na porta e ninguém entrava a não ser com um sinal meu. Era a sentinela da Querência, sempre procurando estar ao meu lado.
Um dia, apareceu na área onde eu estava, botando sangue pela boca e meu filho Fernando, que é veterinário, tomou as providências necessárias, curando-a após vários dias. Teve dois filhos, um macho e uma fêmea, sobrevivendo o macho da mesma pelagem chamado Valentino, nome que lhe deu meu neto Alexandre e que está conosco aqui em Pelotas, no Laranjal. A fêmea, Luana, nome que lhe deu minha neta Camila, partiu muito cedo, mas teve seis filhas, uma delas chamada, também por Camila, de Maravilhosa, é a nova sentinela da Querência. A Guria adoeceu mais tarde e se foi, levando com ela meus carinhos de despedida. Foi uma amizade singular.
Antônio Karam
Pelotas (Laranjal), abril de 2020.
Passo do Salso, mil novecentos e poucos....
Eu deveria estar no início da minha segunda infância. Era um dia de chuva, uma chuva mansa, porém forte, dessas que a terra aproveita bem, não corre muito e vai calando bem, no seio da terra-mãe. Eu conversava com minha mãe e fomos para a janela da sala, olhávamos a chuva cair e víamos ao longe o cavalo tubiano, pastando. Eu estava com as duas mãos apoiadas na janela, na parte debaixo e, nisso, levantei a mão direita, apontando para o cavalo, que ainda pastava. Minha mãe, querendo
fechar a janela, disse-me em árabe “shil idec” (tira a tua mão) e eu tirei a direita, deixando a esquerda e ela puxou as duas folhas, pegando a ponta de meu dedo, vizinho do pai de todos, arrancando a ponta com a unha e eu gritava de dor. Imediatamente ela me socorreu da maneira que pode, botou café em pó sobre a ponta, enrolando-a com um pano. Nesse instante chega o capataz do pai que, nesse dia, tinha viajado. Na campanha silenciosa ouve-se ao longe a voz das pessoas que
falam. Tomaz Centena era seu nome e, do outro lado do corredor, onde morava, ouviu meu choro, perguntando o que havia acontecido. Passado alguns minutos fui ver as galinhas que, praticamente, eu cuidava e quando a cozinheira queria uma para fazer o almoço eu pegava e matava.
Hoje, apesar dos anos distantes, já beirando os 105, eu ainda olho minha unha, que nasceu torta, devido ao pano que a enrolou por muito tempo, e com carinho me recordo da minha mãe querida, que se foi muito cedo desta vida e a quem devo um pouco de conhecimento da língua árabe. Olho meu dedo e lembro-me de minha mãe e não esqueço “shil idec”.
Antônio Karam
Pelotas (RS), Laranjal, 05/05/2020
Nesta crônica reúno algumas informações sobre a origem da palavra “gaúcho”e
seus usos e costumes que enriqueceram o Pampa e a vida do gaúcho. Mais adiante
comento sobre os Maragatos.
O traje do gaúcho é de origem árabe, que se veio transformando até chegar ao
atual.
Há vários estudos sobre a origem do homem americano. Depois de muitas
opiniões ou hipóteses, há indicações, até aqui, de que o índio americano é
descendente de populações da Sibéria, da Mongólia, da China, do Tibet, do Japão, das
Filipinas e da Ilha Formosa.
Embora pertencentes a uma raça inicial, não há total homogeneidade.
Constituía-se de vários subtipos, com línguas e culturas diferentes, não obstante
existam, em comum, características que apontam uma origem comum. Acredita-se,
entretanto, que outros elementos étnicos diferentes dos asiáticos tenham interferido,
mais tarde, na povoação do Novo Mundo, dando-lhe um poliformismo claro. Também
é sabido que, antes de Cristõvao Colombo, outros elementos humanos já tinham
visitado a América e havia contato entre os incas e a Oceania, intercâmbio através de
balsas enormes.
Desde tempos pré-históricos a América tem sido ponto de atração por parte de
povos asiáticos. Os que chegando à Europa Oriental, entre a Sibéria e o Alasca,
encontraram o estreito de Bering e o rosário das Ilhas Aleutianas, dando passagem.
Tempos depois, houve degelo e o estreito de Bering, por onde passaram, atrás de
manadas de mamute, não lhes permitiu voltar. Passados milhares e milhares de anos,
acabaram se afastando de suas origens e aqui ficaram seus dialetos, costumes e
instrumentos etc, que, em muitos casos, se assemelham.
Quando Colombo chegou na América pensou estar chegando na Índia e
começou a chamar os habitantes de índios, nome que, embora por engano,
permaneceu. Esse povo foi chamado de ameríndio e povoou as Américas, dando
origem ao índio americano. Os fenícios, que já haviam passado por aí, deram notícias
de um povo trigueiro. Sabe-se que, no Peru, existia uma civilização chamada Nasca,
anterior à civilização Inca. Ela estava enterrada. Escavando, pesquisadores
encontraram, quatro metros abaixo, muros de 40 centímetros de largura e uma
cidade muito adiantada, inclusive com pirâmides, com pedras bem ajustadas, embora
não fossem iguais às pirâmides faraônicas. Ficaram, então, maravilhados e curiosos ao mesmo tempo. Através de estudos chegaram a conclusão de que - uns dez ou doze mil anos antes da nossa Era, quando os povos da Mesopotâmia, do Oriente, do Egitoetc começaram a deslocar-se paralelamente a outra civilização - os peruanos viviam como na Pérsia ou na Mesopotâmia. Chegaram à conclusão de que o fenômeno neolítico, o abandono da vida nômade pela sedentária, da caça pela agricultura, existiu na mesma época em que ocorreu em várias partes do mundo, como no Oriente Próximo, China, Índia e Egito, dez ou doze mil anos atrás.
Nesse trabalho, em que encontraram verdadeiras maravilhas, salientam-se
Paulo Kosok, astrônomo norte-americano, o descobridor de Nasca e Maria Reich
Neumann, matemática alemã, chamada de “a mãe dos pampas”.
Portugal, durante 252 anos, esteve sob domínio árabe, e a Espanha quase 800
anos. A miscigenação intensa foi um fato inegável e, com ela, a língua, os costumes, o
trabalho nos seus mais variados setores, notadamente na agricultura irrigada,
deixaram sinais evidentes dessa grande civilização. Os árabes diziam “chauch”, que
passou a “gauch” (tocador de gado) e, daí, a “gaúcho”, que os espanhóis trouxeram
para o Rio da Prata (ver Claude Farhat Hajjar, autor de Imigração árabe - 100 anos de
reflexão). A palavra “gaúcho” passou para o Rio Grande do Sul (que, por longo tempo,
formava com o Uruguai e Argentina o chamado “País dos Gaúchos,” enquanto não se
definiam os limites) e foi dada àquele que nasceu do amálgama do branco e do índio
com o espanhol do Rio da Prata e àquele que trabalhava nos serviços de couro, do
charque, também chamado changador.
A princípio, a palavra tinha sentido pejorativo, mas com o tempo foi adquirindo
outro conceito, a ponto de ocupar sentido de destaque, à semelhança do que
aconteceu com a palavra “maragato”, de que falarei adiante.
Fernando Osório Assumpção, nascido em Montevidéo, autor de obra de dois
volumes sobre o gaúcho, dá como origem da palavra, na língua indígena, “gahu”.
Todavia, tenho inclinação pela origem espanhola. Desse gaúcho platino, foi-se
distanciando outro tipo, que passou a chamar-se “gaúcho riograndense” (ver também
Gaúchos e Beduínos, de Manoelito D’Ornellas ; e El gaucho argentino, de Alfredo
Monla Figueroa).
Os campos não possuíam ainda divisas, eram abertos, assinalados, apenas,
pelas aguadas e matos, e o gaúcho ia longe em busca da rês alçada, era o “gaúcho
campeador”. Mais tarde, com a vinda dos açorianos, em 1747, que já traziam sangue
mouro “árabe”, e depois em 1824, com os alemães, o meio foi-se modificando. Os
campos passaram a ser divididos, assinalados, e já não havia mais o gaúcho campeador que buscava a rês alçada pelos campos sem fim.
A indumentária, pitoresca que existia foi, a pouco e pouco, se modificando, até
chegar a atual, havendo mesmo uma certa diferença entre o gaúcho antigo e o atual,
no jeito de ser, de lidar, enfim. Os que chegavam traziam seus costumes, que se
mesclavam com os do meio em que passaram a viver: “Nada é estático e a evolução é
lei”.
Vieram os libaneses, os sírios, enfim, povos árabes; vieram os italianos, os
poloneses, os suíços, os japoneses e outros, todos enriquecendo a nova morada, com
seu trabalho e sua cultura. O hábito de comer churrasco já vinha de outras eras em
que os povos primitivos atiravam a carne nas cinzas quentes ou nas brasas e depois
passou ao espeto. O homem da idade da pedra começou a fazer brinquedos de argila
ou de pedra e, de repente, fez bolas desse material e atou-as com tiras, surgindo a
boleadeira.
Antes de Cristo, em épocas muito distantes, o homem procurava conservar a
carne, talvez ao ar livre mas, ao descobrir o sal, passou a salgá-la. O homem primitivo
sentiu necessidade de alimentar-se e não tinha meios para alcançar o animal.
Tocavam, então, os animais costa abaixo, diretamente a um precipício, ao fim
do qual chegavam cansados, rolando e quebrando-se, num espetáculo estarrecedor,
apavorante. Era o momento de escolher alguns para alimento, comendo a carne crua
mesmo, mais tarde com sal. Depois inventou a armadilha, a flecha etc. Mais tarde teve a ideia do laço, pois isso lhe facilitaria alcançar o animal. Para tanto, estaqueava o couro e ia tirando uma tira, do centro para fora. O tamanho do laço dependia da
largura da tira, se mais larga ou mais estreita. É claro que esse laço primitivo estava
longe de ser o trabalho artesanal de hoje.
Os ameríndios, que povoaram as Américas, ancestrais de nossos índios,
trouxeram seus hábitos, vocabulários e instrumentos que aqui ficaram, incorporando-
se aos demais. O homem é um produto do meio. Por isso, se tivermos de julgá-lo
devemos recuar ao tempo em que ele viveu, de acordo com as circunstâncias que o
cercavam e os recursos de que dispunha, frente aos desafios que o ameaçavam e
conhecimento que possuíam na época.
Muitas palavras como charque, churrasco, chiripá, vieram do “quíchua”, língua
falada no Peru, segundo temos conhecimento. Por falar nisso, lembramos que um
quarto do nosso vocabulário português é constituído de palavras árabes que nos
vieram através de Portugal e Espanha, península Ibérica, porque ali se instalou o povo
íbero, depois de ter passado por vários países europeus. Por isso, poderia chamar-se
América Ibérica, em lugar de Latina. A Maragatería, na Espanha, ocupava uma área de
400 quilômetros, compreendendo 44 povoados. Há vários estudos sobre a origem da
palavra “maragato”, entre elas uma de origem egípcia, “Marhat”, mas estudos mais
aprofundados indicam que ela vem do latim “mericator”. Em Los maragatos , de Luís
Alonso Luengo, o povo maragato compõe um núcleo Celta, que se incorporou ao
semitismo fenício, não se romanizou e permaneceu puro em sua essência astur-púnica e cristã.
Os maragatos iam longe com seus cargueiros, enquanto as mulheres
permaneciam, cultivando a terra. Mais tarde, dois maragatos bérberes vieram para a
província de São José, no Uruguai, e trouxeram a bombacha e daí foram para
Montevidéo e, na Argentina, chegaram a Carmen de Patagones.
Diziam os maragatos: “un maragato sin mulo no es maragato”. Eles cruzaram a
égua com o burro e obtiveram a mula (híbrido) que chamavam de mulo.
Por muito tempo, enquanto Portugal e Espanha discutiam a posse das terras
nas fronteiras com Uruguai e Argentina, em consequência de vários tratados sem
acordos definitivos, uma parte do Brasil, de Laguna até a fronteira sul-brasileira, estava por ficar nas mãos dos espanhóis. A Colônia do Sacramento, construída pelos
portugueses em 1680 (e várias vezes destruída pelos espanhóis) acabou sendo cedida em troca dos Sete Povos das Missões.
É importante registrar que, no século VIII, o general Tarik ibn Ziyad, à frente de
soldados muçulmanos, pelo Mediterrâneo, de barco, desembarcou no sul da Espanha
e transpôs o “Monte ou Montanha” ao vencer uma batalha. Ele era berber, um povo
de olhos azuis, que quase se tornou um império e, culturalmente, o foi, ocupando
grande parte da Andaluzia, onde hoje se encontram cidades como Córdoba, Granada e
Sevilha. Os berberes se juntaram à causa árabe, acompanhando-a, e seu sangue
contribuiu na miscigenação da Espanha, pelo Rio da Prata, e daí para o Uruguai,
Argentina e Rio Grande do Sul, estimulando fortemente a formação do gaúcho em
geral. Quero esclarecer ainda que monte ou montanha, em árabe, é “djebel”. Tarik
transpôs a montanha, que ficou conhecida como a “montanha de Tarik”. Com o tempo
sofreu corruptela e de “jebel el Tarik” (montanha de Tarik) se transformou em
Gibraltar.
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